Notícia - Por que uma mulher medieval tinha lápis-lazúli escondido em seus dentes
 Hype Science Publicou uma notícia no dia:11/01/19 10:52:59

Por que uma mulher medieval tinha lápis-lazúli escondido em seus dentes


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Cientistas identificaram ultramarino, um pigmento que na época só poderia ter vindo de lápis-lazúli originado em uma única região do Afeganistão, no tártaro dentário de uma mulher de mil anos atrás.

Inicialmente, os pesquisadores não tinham ideia do que poderia ser aquela substância azul brilhante tão antinatural – parecia tão fora de lugar.

Quando finalmente descobriram que se tratava de um pigmento que já valeu seu peso em ouro, mais notavelmente usado para dar às vestes da Virgem Maria sua cor marcante em séculos de obras de arte, chegaram à conclusão de que os dentes nos quais ele estava embutido provavelmente pertenciam a um escriba ou pintora de manuscritos medievais.

Achado inacreditável

Quem foi essa pessoa? De acordo com a datação por radiocarbono, ela viveu por volta de 997 a 1162 e foi enterrada em um mosteiro de mulheres em Dalheim, na Alemanha.

Uma vez que os cientistas detectaram tais partículas azuis em seus dentes, isso indica que os manuscritos medievais não eram apenas redigidos por monges – freiras também podiam produzir os famosos e laboriosos livros.

Aliás, algumas dessas mulheres devem ter sido muito boas para chegar a usar um pigmento tão precioso e raro quanto o ultramarino.

Muitos especialistas em arte procurados pela equipe que fez a descoberta ficaram céticos. Alguns rejeitaram a ideia de que uma mulher poderia ter sido uma pintora com habilidade suficiente para trabalhar com o pigmento.

Um sugeriu até que a mulher tivesse entrado em contato com o ultramarino porque era simplesmente a faxineira. No entanto, depois de uma extensa pesquisa, os pesquisadores chegaram à conclusão de que este não poderia ter sido o caso.

Mulheres e manuscritos medievais

Anita Radini e Christina Warinner, pesquisadoras que estavam analisando o tártaro, decidiram procurar Alison Beach, uma historiadora da Universidade Estadual de Ohio (EUA) especializada em mulheres escribas na Alemanha do século XII.

Nas últimas décadas, Beach e outros estudiosos passaram a catalogar as contribuições negligenciadas de mulheres para a produção medieval de livros. Segundo a historiadora, o desafio é que a maioria dos manuscritos não é assinado e, quando é, geralmente o é por homens.

Porém, um pequeno número de manuscritos sobreviventes é assinado por mulheres, e estudiosos já encontraram correspondências entre monges e freiras sobre a produção de livros.

Beach chegou a encontrar uma carta datada de 1168 na qual um guarda-livros de um monastério masculino encomenda à uma irmã “N” a produção de um manuscrito de luxo usando materiais como pergaminho, couro e seda. O mosteiro onde a irmã “N” morava fica a apenas 65 quilômetros de Dalheim, onde foram encontrados os dentes com lápis-lazúli.

Beach também identificou um livro usando lápis-lazúli escrito por uma mulher na Alemanha em torno de 1200. O pigmento teria viajado quase 6.500 quilômetros do Afeganistão para a Europa através da Rota da Seda.

Conclusão

Todas as evidências sugerem que escribas mulheres estavam, de fato, fazendo livros que usavam pigmento de lápis-lazúli na mesma área e mais ou menos na mesma época em que a mulher dos dentes azuis estava viva.

A dupla considerou uma série de alternativas para como o lápis-lazúli poderia ter entrado na placa dental da mulher. Poderiam as partículas ter vindo do ato de beijar repetidamente um manuscrito iluminado? Essa prática não se tornou popular até três séculos depois que essa mulher provavelmente morreu. Poderia ter sido ingerido como remédio, como sugerido em textos médicos gregos e islâmicos? Há poucas evidências de que esse tipo de prescrição era seguido na Alemanha do século XII.

Além disso, as partículas de lápis-lazúli também eram especialmente finas, o que requer um laborioso processo de polimento. Este detalhe em particular sugere que foram propositalmente transformadas em pigmento.

A equipe concluiu que dois cenários são mais prováveis: ou a mulher era de fato uma pintora que poderia ter ingerido ultramarino enquanto lambia seu pincel, ou ela respirou ultramarino enquanto preparava o pigmento para si ou para outra pessoa.

Evidências em tártaro, mais um achado notável

Se pigmentos podem ser preservados no tártaro – o material amarelado nos dentes que a placa dentária endurece -, isso significa que fibras, metais e outros corantes também poderiam.

“Isso é realmente um grande negócio”, explica Mark Clarke, historiador de arte da Universidade Nova de Lisboa, que não participou do novo estudo. “Está abrindo uma nova avenida na arqueologia”.

Inicialmente, Radini agora na Universidade de York, estava interessada em grânulos de amido em tártaro como substituto da dieta, e Warinner, pesquisadora de microbiomas do Instituto Max Planck, queria estudar o DNA de bactérias orais antigas. Mas as partículas azuis eram impressionantes demais para serem ignoradas. E as descobertas as quais levou, também.

Warinner continua estudando partículas incorporadas em tártaro antigo. Ela e outros cientistas descobriram de tudo, desde partes de insetos, pólen de flores ornamentais exóticas a ópio, pedaços de lã e proteínas de leite – em dentes que contam histórias sobre como as pessoas viviam.

Ao que tudo indica, detritos da vida cotidiana se acumulam naquilo que os dentistas modernos se esforçam tanto para fazer sumir. “Eles não estão pensando em futuros arqueólogos”, brinca Warinner. [TheAtlantic]