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Indulto natalino, um perdão ultrapassado e sem sentido
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Homicidas, ladrões, corruptos, estelionatários, espancadores de mulheres, falsários, receptadores, cafetões. Pessoas que cometeram esses crimes — e muitos outros, mais ou menos cabeludos — puderam ou podem ser beneficiadas por indultos natalinos, aquele carinho que chega todo fim de ano com as rabanadas e o arroz com passas. Em termos simples, um país que tem, no seu estado mais rico e populoso, uma taxa de 4% na resolução de crimes pega os pouquíssimos criminosos que conseguiu encarcerar e decide, a cada ano, como regalo para o cidadão, botar parte deles na rua.
Apesar da polêmica furiosa envolvendo o julgamento, no STF, do indulto de 2017, o instituto do perdão por decreto não foi inventado pelo presidente Michel Temer. Vem desde a Antiguidade. No Brasil, já teve uma amplitude de fazer corar ministros do Supremo: na Constituição de 1824, a mais duradoura que tivemos, o imperador podia perdoar ou moderar penas impostas por sentença. Assim, a seco, sem detalhamentos, todavias e excetos.
A Constituição de 1988 deu ao presidente da República o poder de “conceder indultos e comutar penas”. De 30 anos para cá, o decreto natalino nunca falhou. Mais ou menos amplo, abarcando crimes mais graves em alguns momentos, apertando o parafuso em outros, brota geralmente em dezembro da caneta presidencial — mas carrega, para mim, aquele ar de monarquia absolutista que combina melhor com punhos de renda e perucas empoadas. Um adendo: indulto não tem nada a ver com progressão de regime (fechado para semiaberto, por exemplo) ou benefícios já previstos na Lei de Execução Penal, com a visita periódica ao lar. Indulto é um perdão. Fim da pena. Rua. C’est fini.
Não estou aqui para analisar os aspectos jurídicos dos indultos (deixo para os juristas a tarefa) nem o componente filosófico da medida (a missão cabe aos filósofos). O meu assombro é mais básico: indulto por quê? Para quê?
Olhando o decreto 9.246, o tal polêmico indulto natalino do ano passado, por que raios um detento condenado merece perdão da pena no caso de ter cumprido “um terço da pena, se não reincidentes, e metade da pena, se reincidentes, nos crimes praticados com grave ameaça ou violência a pessoa, quando a pena privativa de liberdade não for superior a quatro anos”? Achou ruim? Pois em 2007, o Decreto 6.294, assinado pelo então presidente Lula, previa indulto para “condenado a pena privativa de liberdade não superior a oito anos, não substituída por restritivas de direitos ou multa e não beneficiado com a suspensão condicional da pena, que, até 25 de dezembro de 2007, tenha cumprido um terço da pena, se não reincidente, ou metade, se reincidente”.
Oito anos. Sabe o que cabe nesse afago presidencial? Boa parte do Código Penal e da chamada legislação extravagante (a que está fora do código). Lesão corporal grave. Sequestro e cárcere privado. Roubo. Furto. Homicídio simples. Tráfico de pessoas. Receptação. Extorsão. Interessante que, em 2007, não houve a grita que acontece agora. Talvez porque os tempos sejam outros. E o presidente, também.
Voltando à pergunta: por que um preso que cumpriu parte da pena por um determinado crime merece ser perdoado? O que ele fez para isso? Plantou uma árvore na cadeia, resgatou um gatinho preso no telhado da galeria, pintou uma reprodução da “Santa ceia” na capela do presídio? Nada disso. Indultos natalinos não são pessoais, individualizados. Se a pena e o crime do interno cabem na moldura determinada pelo decreto, a sorte lhe sorriu, pode comemorar.
Vários dos indultos natalinos ainda previam benefícios para presos mais idosos. De novo, cabe a pergunta: um escroque, quando envelhece, vira o quê? Um escroque velho. Chegar à terceira idade não torna as pessoas melhores, apenas mais enrugadas.
Há ponderações sobre o poder do indulto de esvaziar cadeias. Primeiro, se tais decretos anuais fossem eficazes, não teríamos presídios superlotados país afora. Segundo, e já escrevi sobre isso, confunde-se aqui um problema jurídico com outro, administrativo. Falta de vagas no sistema carcerário não significa excesso de detentos, mas carência de prisões. O Brasil está muito longe de ser um campeão de encarceramento. Construir mais cadeias é importante para que cada preso possa cumprir sua pena com um mínimo de decência. E até o fim.