Notícia - Guia de leituras para o verão
 Época Negócios Publicou uma notícia no dia:06/12/18 12:33:27

Guia de leituras para o verão


Imagem:


Todo ano, mais ou menos nesta época, quando os dias se alongam, cada vez mais quentes, uns versos do poeta português Camilo Pessanha começam a martelar na minha cabeça: Foi um dia de inúteis agonias./ Dia de sol, inundado de sol!.../ Fulgiam nuas as espadas frias.../ Dia de sol, inundado de sol!.../ Foi um dia de falsas alegrias.” Às vezes, a poesia é o único refresco para um dia de calor. Lembrei-me desses versos há alguns dias e comecei a conversar com alguns amigos sobre leituras de verão. Não aqueles livros que separamos para ler no fim do ano, nas férias, quando está quente demais, ensolarado demais, úmido demais, para atividades ao ar livre; mas livros onde o sol e o calor aparecem, são notados pelo narrador e interagem com os personagens – ou são personagens.

Aí vai uma modesta lista de livros para proteger a vista da violência do sol do verão. Quem não é como aquele eu lírico dos Smiths e não tem uma amiga dentuça em Luxemburgo para quem escrever versos assustadores também pode passar os dias quentes de verão fechado em casa, talvez lendo romances assustadores de um escritor epilético de São Petersburgo.

O estrangeiro, de Albert Camus

“Sacudi o sol e o suor”. Foi esse o gesto de Meursault, o narrador de O estrangeiro, após matar um árabe a tiros numa praia argelina. Quando comparece em frente a um juiz que quer saber porque ele matou o árabe, Meursault responde apenas que foi “por causa do sol”, que aparece inúmeras vezes no romance, quase sempre ameaçador: “o sol estava agora esmagador”, “sentia as pancadas do sol na testa”, o “sol derretia o alcatrão”. Meursault é um anti-herói misantropo e fotossensível. Não se excita com os corpos femininos e não se comove com a morte da mãe – nem a proximidade da própria execução o aflige. O tribunal o condena não pelo assassinato frio de um árabe, mas por ser incapaz de sentir remorso e não ter chorado no enterro da mãe, num dia de sol. O estrangeiro ilustra bem a filosofia existencialista elaborada por Camus nos anos do pós-guerra: não há sentido, só absurdo; a única possibilidade de redenção do homem moderno jaz na rebeldia, na recusa lúcida de crenças políticas ou religiosas. Quem nunca chegou a uma conclusão parecida depois de passar uma tarde escaldante num apartamento abafado no meio de uma cidade poluída?

Crime e castigo, de Fiódor Dostoiévski

Sim, faz calor na Rússia. É assim que começa o romanção psicológico de Dostô: “Nos começos de julho, por um tempo extremamente quente, saía um rapaz de um cubículo alugado, na travessa de S..., e, caminhando devagar dirigia-se à ponte K...”. O rapaz é Rodion Românovitch Raskólnikov, o estudante pobre e desesperado, que pensava ser como Napoleão, um homem de ação, e, por isso mata uma velha usurária. Foi um amigo meu que lembrou que Crime e castigo se passa no verão, quando praticamente não anoitece nas latitudes extremadas de São Petersburgo. Na minha memória, era um livro de inverno (porque russo). Imaginava Raskólnikov perambulando por uma Petersburgo gelada, coberto de casacos grossos, apropriados para esconder um machado. Mas o narrador informa que “na rua fazia um calor sufocante, ao qual se juntavam a aridez, os empurrões, a cal por todos os lados, os andaimes, os tijolos, o pó e esse mau cheiro peculiar do verão, conhecido de todos os petersburgueses que não possuem uma casa de campo”. Será que o sol e o calor sufocante torraram os miolos de Raskólnikov e ele começou a delirar que era Napoleão? Será que Raskólnikov é um Meursault setentrional e novecentista? E se Crime e castigo for um romance não sobre o riscos de macular a alma russa com ideias europeias, mas sobre as consequências de uma severa insolação? Não sei... Talvez o “calor sufocante” dos peterburgueses seja o que os paulistanos chamam de inverno rigoroso ou frio intenso. Afinal, numa cena do romance, Raskólnikov vai buscar “um amplo e forte casaco de verão, de um pano de lã grossa”, desses que se usa quando garoa em maio.

A dama e o cachorrinho, de A.P. Tchekhov

O conto de Tchekhov nos apresenta o bancário moscovita Dmítri Dmítritch Gurov, que era dado a amores de verão – o problema é que seus amores de verão aconteciam mais ou menos a cada dois dias, em todas as estações do ano. Um desses amores começou em Ialta, um balneário na Crimeia (a península ucraniana que Vladimir Putin anexou). Gurov avista Ana Sierguéievna, que andava sempre acompanhada de seu “lulu branco”, numa noite clara, de ar sufocante, após “um dia de calor”. Ana passava férias na praia sem o marido, um “lacaio” dos figurões russos. Gurov também era casado, mas a mulher ficara em Moscou. Um pouco tristes, um pouco entediados, os dois aproveitam os dias de sol na companhia um do outro, entre sorvetes, refrescos, conversas sobre o tempo (“o vento arrastava a poeira em turbilhão e arrancava os chapéus. Dava sede o dia inteiro”) – e beijos. Quando se separam e voltam cada um para sua casa e cônjuge, o narrador anota que “já cheirava a outono”. No frio de Moscou, Gurov não consegue tirar da cabeça a lembrança ensolarada de Ana, sentia saudades da “vida autêntica e mais interessante” que conheceu ao lado dela à beira-mar.

A dama e o cachorrinho tem pouco mais de 20 páginas e pode ser lido no ônibus, num desses engarrafamentos de verão, quando, depois da chuva torrencial, todos os semáforos da cidade apagam. O último parágrafo é tão bonito que até alivia o desconforto de usar o transporte público em dias abafados: “Tinham a impressão de que mais um pouco e encontrariam a solução e, então, começaria uma vida nova e bela; todavia, em seguida, tornava-se evidente para ambos que o fim ainda estava distante e que o mais difícil e complexo apenas se iniciava.”

O sol na cabeça, de Geovani Martins

“Acordei tava ligado o maçarico! Sem neurose, não era nem nove da manhã e minha caxanga parecia que tava derretendo. (...) Já tava dado que o dia ia ser daqueles que tu anda na rua e vê o céu todo embaçado, tudo se mexendo que nem alucinação. Pra tu ter uma ideia, até o vento que vinha do ventilador era quente, que nem o bafo do capeta.” É assim que começa “Rolézim”, o primeiro dos 13 contos de Sol na cabeça. Em “Rolézim”, uma turma de meninos pobres e pretos vai à praia, onde são vigiados com desconfiança pelos boyzinhos da Zona Sul e pelos policiais, num rolê meio “As caravanas”, a música de Chico Buarque: É um dia de real grandeza, tudo azul/ Um mar turquesa à la Istambul enchendo os olhos/ Um sol de torrar os miolos/ Quando pinta em Copacabana/ A caravana do Arará, do Caxangá, da Chatuba/ A caravana do Irajá, o comboio da Penha/ Não há barreira que retenha esses estranhos.

A prosa dos contos é quente – não só porque o calor impiedoso do Rio de Janeiro invade todo o livro. Assim como os meninos da favela invadem a praia dos ricos, Martins não pediu desculpas e invadiu a literatura brasileira com gírias cariocas às vezes incompreensíveis e contos de aguda sensibilidade social, como “Espiral”, em que um menino percebe que a cor de sua pele enche de medo e desconforto a boa gente da Zona Sul. O título livro – referência aos versos de “O trem azul”, de Lô Borges e Ronaldo Bastos – aparece no começo do conto “Roleta russa”, sobre um menino que surrupia o revólver do pai para brincar de polícia e ladrão com os amigos: “Ignoravam o sol na cabeça e, em vez de disputarem a pouca sombra que fazia o pé de acerola, brigavam para pela melhor posição pra ver a fotonovela pornô que o Mingau achou em casa”.

A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector

“Perdida no inferno abrasador de um canyon uma mulher luta desesperadamente pela vida”. Essa frase, subtítulo de uma reportagem que ela nunca terminou de ler, ressoava na memória de G.H., na narradora do romance, na manhã em que ela decidiu a arrumar o apartamento começando pelo quarto da empregada que se despedira no dia anterior. Talvez essa seja a única referência ao calor que aparece nesse romance esquisito, que começa com um longo monólogo sobre a liberdade e o desconforto de perder uma terceira perna que, embora nos impeça de caminhar, fazia de nós tripés estáveis. No quartinho abafado da empregada, G.H. se depara com uma barata. Esmaga a barata. Come a barata. Degusta a meleca esbranquiçada que escorre da carcaça morta da barata. “Uma barata só apareceria nesse clima nojento”, disse um amigo meu, argumentando que A paixão segundo G.H. provavelmente se passa nos dias mais quentes do verão. E existe época melhor para epifanias, faxinas pesadas e discussões filosóficas sobre a liberdade?

Ruan de Sousa Gabriel é repórter de ÉPOCA e O GLOBO, escreve sobre livros e mercado editorial