03/01/19 12:08:41
Os CEOs que querem mudar o mundo
Imagem:
Estamos no Grajaú, extremo sul de São Paulo. Do outro lado de um córrego sujo está a ZR — ou Zona Rural —, apelido que os moradores dão à favela, que fica a poucos passos da Sociedade Beneficente Alemã (SBA) Girassol. Fora do horário de rush, o táxi que sai da região dos Jardins demora cerca de uma hora e meia para chegar. Alguns, no entanto, recusam a corrida. Com fama de violento, o bairro consta na lista dos piores distritos da cidade, segundo o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). Nos arredores, ladeiras cheias de entulho, mato alto, cavalos e casas sem reboco, construídas como puxadinhos. Cabeleireiros às dezenas. Calotas de carro às centenas. Bares aos milhares. E um microempreendedor atrás de cada portinha. Difícil acreditar que estamos na cidade mais rica e cosmopolita do país. Sair desse labirinto é quase tão complexo quanto chegar, e sempre vem acompanhado por avisos de perigo: “Uber, só o pop. E olhe lá”.
O prédio da SBA é um oásis. Foi construído sob a inspiração do Portinho, escola infantil alemã do renomado colégio de elite Visconde de Porto Seguro. É ali, em uma das salas de aula, que se acomodam executivos e CEOs de algumas das mais importantes empresas do país. Eles são alunos do curso CEO’s Legacy, da Fundação Dom Cabral (FDC). E o Grajaú serve de laboratório para a vertente que batizaram de “Inclusão pela Educação”. Naquela manhã, eles saíram cedo, às 7h, em uma van que partiu da portaria da fabricante de produtos químicos orgânicos industriais Evonik Degussa. Weber Porto, presidente da empresa, é um dos alunos. O relacionamento de Porto com a entidade, já antigo, facilitou a aproximação dos demais colegas. Nem todos estão hoje. Presentes, além dele, Andreia Dutra, CEO da multinacional francesa de benefícios Sodexo; e Maitê Leite, presidente do Deutsche Bank no Brasil.
Todos já estão sentados em carteiras azuis. A atividade, supervisionada pelo professor Heitor Coutinho, da FDC, vai começar daqui a pouco. No canto esquerdo da sala, aguardam, ansiosos, José Washington Nascimento de Santana, 36 anos, e Guilherme Silva Rocha, 22. Moradores da comunidade, estão ali para “vender” seus projetos para a Aceleradora de Ideias dos Presidentes. Cada qual a seu modo, os dois explicam à banca que buscam algo em comum: conhecimento e financiamento para suas escolas de futebol para crianças e adolescentes da região. Logo depois do pitch, preparam-se para responder comentários e perguntas, que não são poucos:
— A decisão que vocês tomaram foi consensual?, questiona Maitê.
— Qual é a metodologia? Como os profissionais envolvidos serão preparados? E se vocês venderem esse projeto para os executivos de uma empresa para depois, com o dinheiro, financiar os projetos para as crianças? Ficarão ricos, propõe Andreia.
— E se alguém se machucar no treino? Preparo é fundamental. O improviso não pode comandar as iniciativas. Vocês terão de aprender a vender, aconselha Porto.
Com a firme disposição de ajudar, os CEOs quebram a cabeça pensando na melhor estratégia para os projetos. Pensam na qualificação dos profissionais envolvidos, no retorno sobre o investimento (ROI), nas táticas para harmonizar os stakeholders. Nos riscos, nas métricas e nas regras. Na maior parte do tempo, José e Guilherme apenas ouvem. Parecem tão gratos pela rara oportunidade de serem ouvidos que não retrucam. Acolhem as críticas e sugestões com atenção resignada. No meio da sabatina, um observador vindo do Instituto Anchieta Grajaú, Celso Garbarz, às vezes intervém como “intérprete”.
— O que eles querem dizer é.....
No final, nas palavras de Guilherme, os dois entenderam, sim, o feedback dos CEOs, “mesmo que sem entender”. “A verdade é que eu não sei responder as perguntas deles, não sei medir, dar os números”, diz Guilherme. “Temos por aqui pais sem documento, crianças sem documento. Às vezes, a própria família do menino não estimula a ir para a escola. Aqui a vida é igual a areia movediça. Tudo muda a toda hora. Um afunda, outro vem. Volta e meia escapa um e a gente corre atrás. É muito sedutor o outro lado, sabe?” O “outro lado” a que Guilherme se refere é a criminalidade. É com ela que, de fato, as iniciativas dos dois competem todos os dias. Especialistas no imprevisível, eles matutam como vão dar o próximo passo diante do abismo que os separa dos CEOs. José assinala que só o fato de eles estarem pisando ali já é um milagre. Mas o curso será capaz de construir uma ponte para mindsets tão diferentes? “Esse é um exercício de compreensão”, diz Antonio Batista da Silva Júnior, CEO da FDC. “Não adianta pensar que o sapo vai ser beijado e virar príncipe de uma hora para a outra. É um processo.”
A proposta do CEO’s Legacy nasceu há quase dois anos. Na época, dirigentes, professores e presidentes de empresas se questionavam sobre qual seria a grade curricular ideal para ajudar as companhias na travessia digital, em um contexto de crise de lideranças políticas e empresariais. Mas, estudar o que, para além da gestão e dos resultados financeiros? Depois de muita reflexão, eles concluíram que o melhor seria montar um curso “sem fim”, com foco no papel social dos líderes — a construção de algo que deixasse uma marca na sociedade. Algo que não desaparecesse em um clique nem virasse conversa fiada, segundo Antonio. Daí a ideia de “legacy”, ou legado. “Ser CEO hoje é bem diferente do que já foi um dia. Significa agir e transformar. E são eles, os líderes, que têm a responsabilidade de conduzir essa transformação para a criação de legados relevantes e sustentáveis”, diz Beth Fernandes, a diretora do programa CEO’s Legacy.
Por enquanto, a comunidade do Grajaú é um dos três projetos em campo, do qual participam cerca de 25 alunos — a dinâmica de entradas e eventuais saídas é constante. Os outros são “Educação pela Cidadania”, que tem a pequena cidade de Holambra, no interior paulista, como base para inspirar a boa gestão de municípios, e “Melhoria da Vida Humana”, focado no exercício da cidadania de jovens, para discutir bullying e fake news, por exemplo, em webséries que possam ser distribuídas nas escolas. Atualmente, todos estão na fase de “captação de recursos”. A adesão a cada grupo se dá de forma voluntária, e por afinidade com as causas em questão. Uma das vozes mais potentes do Brasil contra o racismo, Theo Van Der Loo, ex-CEO da Bayer, por exemplo, traz o tema para a pauta sempre que pode. “Não dá para falar em meritocracia quando se parte de bases muito diferentes”, observa.
Em aula na sede da FDC, no meio das discussões dos grupos também podemos ouvir o executivo Augusto Almeida, embaixador do curso, dizer que a indústria onde fez carreira, a do aço, é particularmente machista, e puxar para si a responsabilidade pela mudança de mentalidades: “Nossa cultura é antiquada. Temos de dar mais força para a diversidade”.
Em outra mesa, José Vicente Marino, presidente da Avon, manifesta o desconforto que o moveu para o curso. “No Brasil, temos mansões ao lado de favelas. Não dá para conviver com isso e não fazer nada.”
Ricardo Garcia, CEO da Belgo Bekaert Arames, do grupo multinacional ArcelorMittal, explica a razão de ter escolhido o curso: “O Brasil é um país ainda cheio de preconceitos em relação a gênero, raça, credos, orientação sexual etc. Isso não cabe mais no século 21. Precisamos achar a forma correta de multiplicar essa visão e mobilizar para que essa situação tenha uma melhoria significativa no Brasil”.
Gaúcha, Andreia Dutra, da Sodexo, lembra que, antes do curso, não fazia a menor ideia de onde ficava o Grajaú, de onde vêm muitos dos mil funcionários da Sodexo: “Conhecer de perto essa realidade me traz um conhecimento sobre as pessoas que trabalham na empresa que, de outro modo, eu jamais teria. Mas quando volto da periferia, sinto que estou voltando para a bolha de novo. O desafio é integrar realidades diferentes”. Para Paula Paschoal, diretora-geral do PayPal, engajar-se significa, antes de mais nada, “devolver para a sociedade” as mesmas oportunidades que teve na vida. “É isso que fica”, afirma.
A iniciativa, explica Beth, do Legacy, começou a ser construída de forma compartilhada com os alunos em agosto de 2016, mas seu início formal só aconteceria em março do ano seguinte. Nem todos os alunos, contudo, seguiram adiante. Até hoje, foram seis baixas, por desistência e até por exclusão. “São executivos que sucumbem à agenda de resultados e performance, e não aderem à agenda do progresso, que demanda sacrifício pessoal”, explica Batista Jr. “Ainda estamos construindo a noção de que não existe empresa bem-sucedida numa sociedade malsucedida”, completa. Para os professores, é nítido o impacto em quem ficou: “Se fosse possível ter uma câmera fotográfica que capturasse imagens da alma, veríamos claramente pessoas muito melhores agora do que quando começamos”, diz Roberto Sagot, vice-presidente executivo da FDC. Ainda que não seja possível enxergar a alma de cada um, o clima descontraído dos encontros retira armaduras corporativas, desperta a espontaneidade e, em muitos momentos, fica difícil lembrar que os presentes estão à frente de algumas das mais poderosas empresas do país, como Gerdau, SAP, Lojas Marisa, J.Macêdo, Jeunesse, Avon, Serasa, DSM, Aegea, Thyssenkrupp, Philips, Grupo Europa e Bank of America Merrill Lynch, entre tantas outras.
Acostumados a serem bajulados e obedecidos por seus subordinados, os presidentes também encontram outra realidade no curso. Ombro a ombro com seus pares, eles deixam a zona de conforto e ouvem críticas duras. Em grupo, aprendem quão difícil é tirar uma ideia do zero e executar o que lhes é pedido, sobretudo para alcançar a escala pretendida. “Começamos completamente perdidos. CEO é preparado para mandar”, diz Ruben Fernandes, CEO da Anglo American Brasil. “Descobri que cada funcionário tem uma história e aprendi a enxergar a performance de cada um por outros ângulos.” O curso lhe ensinou a enfrentar os imprevistos com serenidade e coincidiu com um momento de profunda reflexão sobre o sentido da vida, deflagrado pelo doloroso processo de tratamento contra o câncer de sua filha adolescente. “A sabedoria não vem fácil. É preciso lutar por ela”, resume.
As aulas práticas vêm acompanhadas por banhos de teoria, com professores da própria FDC e personalidades estelares do meio acadêmico internacional, como o Ph.D. em economia política Subramanian Rangan, que traz, entre outros títulos, o de membro do Conselho do Fórum Econômico Mundial. Ou o professor e filósofo Robert Edward Freeman (leia entrevista na página 96). Ou ainda o investidor e empreendedor social Ruben Vardanyan, do conselho consultivo do International Finance Corporation (IFC) — de sua infinita lista de feitos e filantropia, consta a arrecadação de US$ 500 milhões para financiar a primeira escola privada de negócios da Rússia. É de Vardanyan, aliás, a mensagem de que apenas intenção não basta para causar impacto, até porque muitos surgirão para ridicularizar quem não se concentra apenas nos resultados financeiros. “Os líderes que se engajam em um projeto social têm de ter consistência, paciência e transparência para lidar com os detratores que vão surgir pelo caminho”, diz o investidor.
Inimigos que não faltaram a Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, conforme ensina Ricardo Carvalho, professor de arte e gestão da FDC, em um tour por Ouro Preto, enquanto discorre sobre o “legado da liberdade”. A visita à cidade histórica, permeada por atividades culturais como a apresentação da Orquestra Sinfônica da cidade e visita guiada ao Museu da Inconfidência Mineira, faz parte do programa da FDC. Único no mundo com essa proposta, segundo Batista, o Legacy já motiva outras escolas a criar propostas similares, como a da Saint Paul Escola de Negócios, em São Paulo, que oferece um curso para que CEO (Chief Executive Officer) passe a representar o título de Curator Entrepreneur Officer, com aulas previstas em Ouro Preto e no Instituto Inhotim, como faz a FDC, que deve expandir o curso para executivos C-Level em 2019: “Entendi que o meu legado é ajudar outras pessoas a encontrarem o seu”, diz Batista Júnior.
No Legacy, a agenda de aulas em Minas, no entanto, é apenas uma parte do curso, que gera outra agenda, dos vários encontros entre os colegas no fim de semana. Hoje um dos alunos mais engajados, Abdo Kassisse, diretor-geral da Faurecia Clean Mobility para o Mercosul, quase desistiu. Só não o fez por incentivo da mulher — familiares são bem-vindos às aulas. Membro do grupo do Grajaú, ele conta que aprendeu a contestar o RH para que um número maior de negros participasse dos processos seletivos da empresa, além de se interessar mais pelo tema da violência contra a mulher. Agora, uma de suas palavras favoritas é transgressão. Ele diz: “Mudei. E muito. Descobri que, com boa vontade, todos podem falar a mesma língua”.