03/01/19 12:17:09
Rezas, gritos de guerra e selfies com policiais na caravana para Brasília
Imagem:
A quatorze dias da posse de Jair Bolsonaro veio a decepção: “Não vai poder levar arma de fogo????”, reagiu Arthur Castro à notícia da lista de proibições para a festa da democracia. O evento, que reuniu 115 mil pessoas na Esplanada dos Ministérios, teria o maior esquema de segurança de todos, com cerca de dez mil policiais. Para Castro, uns tiros para o alto viriam a calhar. Mas tudo bem: o que importava era estar em Brasília no dia 1º de janeiro de 2019.
E, para isso, foi organizada uma caravana — que ÉPOCA acompanhou a partir do Rio de Janeiro — por Ronan Guimarães, do Direita São Gonçalo, movimento conservador fundado em 2016, com 6 mil seguidores no Facebook, 12 lideranças em diferentes locais da cidade, sobretudo os mais carentes de atenção, e um grupo de WhatsApp — claro — com 150 pessoas. Arthur Castro, militante de direita e amigo da ex-feminista Sara Winter, foi o outro organizador. As vagas — 56 ao todo, incluindo os organizadores — lotaram na semana do dia 20 de dezembro, quando cai a segunda parcela do salário. Não era a direita caviar quem estava ali.
O ônibus que levaria o grupo a Brasília saiu de São Gonçalo (RJ), município a amenos de 30 km do Rio de Janeiro, com 1 milhão de habitantes, 34% de desemprego juvenil, 29% de trabalhadores informais e 43,9 homicídios por 100 mil habitantes, onde Bolsonaro teve 67,35% dos votos válidos no segundo turno (em 2014, Dilma teve 68% no mesmo turno. A segunda parada foi Niterói, a "cidade sorriso", com 38 homicídios por 100 mil habitantes e 23 mil empregos perdidos entre 2015 e 2016, segundo a Federação das Indústrias do Rio de Janeiro – Firjan). Lá, Bolsonaro teve 62,35% dos votos (em 2014, Aécio Neves levou o segundo turno com 54,94%).
No Rio de Janeiro — onde a taxa de homicídios é de 34,9 por 100 mil habitantes e Bolsonaro teve 66,35% dos votos válidos, perdendo apenas em Laranjeiras, na Zona Sul — o ônibus estacionou próximo ao posto Shell que fica logo atrás da rodoviária Novo Rio, no centro da cidade. As cores seguiam a paleta de seus tripulantes: as cortinas eram verdes, assim como o logo da empresa e parte da lataria. Em cada lado havia a bandeira do Brasil e circundada por uma seta azul de dois lados. O principal condutor — para espanto da esquerda — era uma mulher.
Assim que o ônibus estacionou, os militantes-tripulantes cruzaram as ruas com suas malas e bandeiras. "Nós não estamos lendo livros de história, estamos fazendo história", disse a cabeleireira Charlô, uma mulher baixa, roliça e de meia idade, vestida em shorts curtos, que trabalhou como assessora de Flávio Bolsonaro e, agora, trabalhará com o deputado estadual Rodrigo Amorim (PSL), o mais votado para a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro — e também a pessoa que destruiu a placa em homenagem à Marielle Franco.
"Meu pai petezou a família e eu bolsonarizei a família", disse. Charlô comanda, ainda, um levante feminista conhecido como as bolsonarianas, em oposição às feministas de esquerda. O grupo, espalhado pelo Brasil, tem como uniforme uma camiseta rosa-claro com a foto de Bolsonaro e o nome “bolsonarianas” escrito embaixo. "Eu sou mulher, eu estou com Bolsonaro!", gritou no ônibus.
Duas mulheres comentaram entre si como foi que conheceram Bolsonaro. "Eu conheci naquele vídeo da Maria do Rosário", disse uma morena de cabelos compridos e enrolados. Um rapaz — Marcelo Destro — entra no meio da conversa e diz que também o conheceu por vídeos na internet. "Mudou minha vida." Ronan terminou de vender as camisetas que havia confeccionado para a ocasião da posse ali mesmo na calçada.
O ônibus partiu pouco depois da meia noite do dia 30 para o dia 31 de dezembro, com dois desfalques: um policial que havia levado um tiro na perna recentemente e seu filho. No segundo andar, com o maior número de cadeiras, Maria Inêz Medeiros Belarmino, a Leoa de Braz de Pina (subúrbio carioca), uma senhora de 57 anos, óculos, pele morena clara e cabelos brancos e curtos. Ela ganhou o status de influenciadora entre os bolsonaristas e afins ao denunciar na Câmara dos Vereadores a ideologia de gênero e a apologia política (de esquerda) no colégio Pedro II, onde sua filha caçula, de 12 anos, estuda.
Secretária desempregada, Maria Inêz é uma espécie de Dona Xepa verde e amarela: trabalha como faxineira, vendedora de ambulante e o que mais precisar para sustentar a família. No ônibus, serviu café trazido de casa e puxou o Pai Nosso e a Ave Maria — rezada por todos. "Graças a cada um de nós o nosso Jair Bolsonaro será presidente do Brasil", disse. Depois, colocou o filme "A Noviça Rebelde", musical que conta a história da transformação da família Von Trapp pela música com a chegada da babá — e ex-freira — Maria (Julie Andrews). Quando Maria ensinou os sete filhos do Barão von Trapp a cantar "Do Re Mi" já estavam todos dormindo. A Leoa de Braz de Pina pretende lançar-se vereadora em 2020 pelo PSL e quer levar três escolas para seu bairro.
A primeira parada, em Juiz de Fora (MG), aconteceu em um estabelecimento de estrada no meio da madrugada. Ninguém se atentou que aquela era a cidade onde Bolsonaro sofreu o atentado à faca que marcou, também, o início do crescimento na intenção de votos que o levaria ao segundo turno com 46% dos votos válidos. Cada parada servia para abastecer o cooler com cerveja de lata. (Ao contrário de atos como o #Elenão, ali não havia garrafinhas de Heinneken ou Stella Artois.)
Na parada, Marcelo Destro — gordo, estatura média, barba rente ao rosto e uma fonética difícil de ser compreendida —, especialista em Shiatsu, evangélico e bolsonarista contou que inventou o apelido "destro" porque "tinha que inventar" um apelido. "Senão seria juninho", disse, sem explicar. Era um dos poucos — como Charlô — que já havia estado em Brasília (ela atravessou o país várias vezes em atos pró-impeachment). Após ter sua vida transformada com vídeos de Bolsonaro, Destro começou a militar por ele. De modo "mais agressivo", como diz, desde 2015 — tentou até converter bandido em Japeri. Destro não tem nada contra gays — desde que fiquem em sua intimidade.
Havia, entre os 54 tripulantes, apenas um gay (ao menos visível), Miranda, um homem de meia idade, boné, bermuda, sandália e camiseta com a foto de Bolsonaro e a legenda “Eu fui” – que começou a beber ainda no estado do Rio de Janeiro, contrariando a lei. Em sua foto de WhatsApp, Miranda (Realengo) aparece em fantasia de escola de samba. Sobre a foto o lema bolsonarista: "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos"
Miranda acompanhava Andreia Araújo, uma moça negra, cabelos longos, um pouco acima do peso, que vive no Amazonas com o marido militar, fala alto e, como na canção, "tem um jeito meio estúpido de ser". As interações do grupo com Miranda — ao lado de quem ficava o cooler com cerveja — foram poucas. Algumas em sentido jocoso. Um garoto negro, magro e menor de idade que sentaria ao meu lado no ônibus trocou de lugar assim que o ônibus saiu. Gays, ali, eram sempre "viados" (sic). Em mais de uma ocasião — mesmo já em Brasília — falou que, com o governo Bolsonaro, começaria a "caça aos viados".
Por volta das 11 da manhã de 31 de dezembro, após uma parada para encher o tanque do ônibus, a assistente social Alicia Moreno, uma mulher morena na faixa dos 50 anos, sentou-se ao meu lado. Ela calçava bota ortopédica: em setembro, pouco antes de Bolsonaro sofrer a facada, Alicia caíra em uma cachoeira, onde quebrou a perna. Passou o mês fazendo campanha pelo WhatsApp. Alicia trabalha com Michele Bolsonaro e Damares Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos. Não viu Jesus no pé de goiaba, mas contou já ter visto um OVNI — Objeto Voador Não Identificado. Deixou claro que não havia fumado maconha — vem de família rígida.
No almoço, sentei-me com Lourdes Rocha, uma senhora aposentada, de cabelos grisalhos, óculos e a boca fina e achatada. Continuou a prosa da noite anterior, enquanto aguardávamos a chegada do ônibus: disse que a irmã havia pago tudo, que nunca foi de esquerda, mas reconhecia coisas boas em Lula e nem ele merecia uma facada, como a que Bolsonaro sofreu. Foi isso, aliás, que a fez votar nele. Não pelo fato em si, mas pelo agora presidente ter-se tornado mais moderado, segundo ela, depois do acidente. O filho estuda na UERJ: "Tem doutrinação, sim."
A viagem, prevista para durar pouco mais de 16 horas, estendeu-se por mais cinco horas. O ânimo inicial se esvaiu depois do almoço. Maria Inêz tentou resolver a questão colocando mais um filme no DVD: “Marcelino pão e vinho”, a história do garoto que salva o monastério onde foi abandonado após uma visão de Cristo. Metade dos tripulantes do segundo andar queria assistir o filme. A outra metade não. Foi a única cizânia entre os bolsominions fluminenses.
Quando o ônibus estava, enfim, perto de Brasília, foi parado pela Polícia Federal. Nenhum problema: alguns tripulantes desceram e – como sempre fazem os militantes de direita nessas ocasiões – tiraram fotos com os policiais.
A chegada à capital, na noite chuvosa de 31 de dezembro, não causou traumas a ninguém. Em um grupo que usa o termo "esquerda", "esquerdista" ou "petista" como ofensa máxima pareceu não causar qualquer constrangimento o fato de a cidade ter um comunista, simpático ao stalinismo, como um de seus criadores — no caso, Oscar Niemeyer, morto em 2012.
Os tripulantes desembarcaram, retiraram as malas e chamaram seus táxis e Ubers sob a chuva. Menos de uma hora depois o esgotamento pela viagem já havia se dissipado, como pôde-se acompanhar pelo grupo no WhatsApp: alguns mandaram fotos jantando sozinhos, outras maquiadas e com uma taça de champagne na mão e outros prontos para saírem para a festa de Ano Novo da capital brasileira. Rolou até um gif: duas taças de champagne celebrando a chegada de 1964. A ironia é no sentido inverso dos opositores do presidente Jair Bolsonaro.
Segundo presidente eleito a assumir o poder com a volta das eleições presidenciais, Fernando Henrique Cardoso, embora descendente de militares, tinha um desapreço especial por paradas e eventos militares. "Parada militar no Brasil é pobre pra burro", disse em uma entrevista. "Brasileiro não sabe marchar, eles sambam. Somos o povo menos marcial do planeta."
A definição casaria à perfeição na Brasília do dia 1º de janeiro de 2019. Embora o apreço pela ordem e a autoridade faça parte do sentimento que levou à eleição de Jair Bolsonaro, a Esplanada dos Três Poderes — e seus arredores — logo no início do dia pareciam mais uma micareta verde e amarela: com vendas de camisetas e badulaques com a cara de Bolsonaro, gritos de guerra, celulares, selfies, óculos escuros, casais jovens sentados na grama.
Um furor como o da última terça-feira apenas na primeira posse de Lula, em 2003, quando 70 mil pessoas acompanharam o evento — algumas chegaram até a furar a segurança para chegar mais perto do presidente que tomava posse. Desta vez, no entanto, o vermelho estava excluído do traje — e foi visto apenas em quatro garotos, com a camiseta do Flamengo.
O grupo fluminense se dispersou logo cedo. Encontrei, junto do ônibus estacionado, Ronan, Arthur, Marcelo (o Destro e o Carvalho), Liane Brandão — 32 anos, artesã, mãe de dois filhos, tatuada e com piercing — e Edileuza Nascimento — jovem, loira, morena clara, supervisora das Lojas Americanas. Ronan e Arthur estavam de ressaca, pela noite de Reveillón. Todos, com exceção de Ronan, que vestia uma camiseta rosa onde estava escrito "Calvin Klein", carregavam bandeiras brasileiras consigo.
Arthur — de camiseta regata com a foto de Bolsonaro confeccionada por Ronan, bermuda, boné e chinelo — tomou à frente do grupo, cobrindo o dia da posse por meio de live no celular. Parou no meio do caminho para tirar foto com policiais e elogiou militantes religiosos com cartazes sobre a morte e ressurreição de Cristo.
Liane comprou um bonequinho em miniatura do Bolsonaro que lhe custou 30 reais — e teve de ser deixado numa das revistas da Polícia Federal na entrada da Esplanada. Azar semelhante teve a dona Maria Inêz, impedida de entrar com seus copos de plástico confeccionados para a ocasião — pretendia vendê-los e fazer algum dinheiro. Deixou-os com uma mulher de uma igreja. (Pior azar teve Aparecida Santos – enfermeira, morena, baixa, magra, nariz adunco e dentes salientes – que, junto de duas amigas do grupo, esperou que Bolsonaro passasse ao seu lado e ele passou pelo outro.)
Já Arthur e Ronan conseguiram vender, durante as duas longas filas de revista, as camisetas que restaram. Para o grupo que foi à viagem saiu por R$ 20. Para os companheiros que estavam na Esplanada saiu por R$ 30. Um senhor pediu a Arthur uma camiseta regata como a sua: Arthur a tirou do corpo e a vendeu para ele, colocando uma camiseta de manga curta – e a mesma estampa – no lugar.
Caminhando pela Esplanada, Arthur apresentou a seus seguidores os ministérios — "O ministério de Direitos Humanos, da nossa irmã Damares" – e os ambientou. No meio do caminho para a Praça dos Três Poderes, a notícia: "É ele!" Arthur e os demais saíram correndo em direção à grade esquerda para ver o Mito passar. Era alarme falso.
Os gritos de guerra se alternavam: "Eu vim de graça!" era um dos mais comuns, aludindo que as pessoas presentes nas posses de Lula (2003 e 2007) e Dilma (2011 e 2015) haviam sido pagas para estarem lá. O mesmo argumento foi retomado no grupo da viagem assim que saiu a noticia de que, segundo o Gabinete de Segurança Institucional, a posse de Bolsonaro atraíra 115 mil pessoas, mais que as de Lula em 2003 (70 mil) e a de Dilma em 2011 (30 mil) somadas. As posses de Fernando Collor, em 1990, e FHC, em 1995, atraíram, respectivamente, 20 mil e 4 mil pessoas.
Na Esplanada, ficamos próximos à grade, sob a bandeira do Rio Grande do Sul — estado que, segundo Marcelo Destro, nunca abandonou as armas. Edileuza narrou sobre os ombros de Arthur a entrada de Bolsonaro no Congresso. “Mito! Mito!’
Pouco após a entrada de Bolsonaro no Congresso, o fluxo de pessoas aumentou consideravelmente e o grupo voltou a se dividir. Liane e Edileuza convenceram Arthur e Ronan a irem à Praça dos Três Poderes, onde ficaram gradeados e espremidos por cerca de uma hora, mal conseguindo respirar. Liane, por sua vez, teve seu dia de celebridade, sendo tirada para fotos por vários presentes. Ela atribui isso ao seu visual – tatuagem, piercings e cílios aparentemente postiços, mais comuns em mulheres de esquerda. É também "macumbeira", como disse. Mas, por favor, não se enganem: ela odeia "mimimi" feminista e se declara homofóbica – não que tenha algo contra os gays, mas acha que um casal gay não deve andar de mãos dadas nem se beijar na rua. Marcelo Carvalho, ex-ateu, encoberto pela bandeira brasileira da cabeça aos pés, disse que tampouco tinha algo contra — mas que nenhum desse em cima dele. Marcelo Destro lamentou não ter encontrado ninguém de Japeri na posse.
Pouco depois das 19 horas, o ônibus estava pronto para partir. O grupo estava revitalizado, mesmo que quase nenhum tenha conseguido ver o Mito. O dia sob o sol e 115 mil pessoas haviam feito tudo valer a pena. Maria Alice, uma garota que viajou acompanhada por um bolsoneco — um boneco com a estampa de Bolsonaro — o levou para tomar uma cerveja consigo. Alice se desentendeu e desistiu de voltar com o grupo. Maria Inêz – que precisava cobrar uma garota que não lhe pagou pela capa de chuva – sintetizou o sentimento: “Sim, nós vamos subir a Rampa (sic). Hoje Jair Messias Bolsonaro somos nós.”