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Milhares de empregados do governo chinês selecionam conteúdos proibidos
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Uma investigação aprofundada do New York Times revelou como funcionam as “fábricas de censura” de conteúdos online da China. Os milhares de funcionários mal pagos precisam aprender quais conteúdos são proibidos para poder censurá-los, e eles não contam o que aprendem para ninguém.
Li Chengzhi passou por um treinamento pesado quando começou em seu primeiro emprego de censurador profissional. Ele era um recém-formado de 24 anos que, como a grande maioria da população chinesa, não sabia quase nada sobre os protestos de estudantes da Praça da Paz Celestial, em 1989.
Os funcionários desse tipo de empresa são parecidos com Li: a maioria é recém-formado e na faixa dos 20 anos. Eles não costumam se interessar por política. Os pais e professores chineses costumam ensinar às crianças que interesse por política acaba em problemas.
Ele também nunca tinha ouvido falar de Liu Xiaonbo, o escritor, ativista e vencedor do Prêmio Nobel da Paz de 2010. Ele estava preso desde 2008 por “incitar à subversão contra o poder do Estado”. Liu foi liberado em 2017 porque estava com câncer hepático em fase terminal, e faleceu menos de um mês depois.
Aprendendo história para censurá-la
O jovem profissional passou por semanas de treinamento para aprender esses e outros conteúdos históricos sensíveis para o Estado.
“Meu escritório é ao lado da enorme sala de treinamento. Eu frequentemente escuto os sons de surpresa ‘Ah, ah, ah’”, diz Yang Xiao, diretor de negócios de serviços de internet da empresa em que Li trabalha.
Os trainees estudam esses temas e depois passam duas semanas se preparando para um exame parecido com o vestibular. Eles precisam decorar nomes de líderes políticos e o rosto dessas pessoas para conseguir a contratação.
Li sabe o que procurar na internet – e o que bloquear. Ele sabe encontrar palavras que são códigos para se referir a líderes ou escândalos, ou memes com temas que o governo não quer que a população veja. Ele diz que nunca compartilhou nada do que aprendeu ali com família ou amigos. “Essas informações não são para pessoas de fora saberem. Quando muitas pessoas sabem sobre elas, rumores podem nascer”, justifica ele.
Salário baixo e trabalho pesado
Esse tipo de empresa tem acesso a sites que normalmente são censurados, para que eles fiquem por dentro das novidades proibidas.
No início de cada turno de trabalho, os funcionários são atualizados sobre os temas do momento, e antes de começar a procurar por esses conteúdos, têm que passar por um teste de memória com 10 perguntas. O pagamento é proporcional ao resultado desse teste. Trabalhadores como Li costumam receber entre US$350 e US$500 por mês, e revisam de mil a 2 mil conteúdos por dia.
Uma dessas perguntas foi: “qual dos nomes a seguir é da filha de Li Peng, filha do ex-premier chinês?”. A resposta correta é Li Xiaoling. Ela foi ridicularizada por seu gosto caro por roupas e por ter uma alta função, assim como muitos filhos de políticos.
Li leva seu trabalho muito à sério. “Ele ajuda a limpar o ambiente online”, diz ele em entrevista para o jornal estadunidense. Sua empresa revisa conteúdo para um aplicativo que agrega notícias.
Autocensura
Para as empresas chinesas, é questão de vida ou morte ficar do lado do governo. As autoridades exigem que as companhias se autocensurem. Para evitar enormes problemas, as empresas contratam milhares de funcionários para fazer a censura.
Isso gerou demanda por empresas específicas de censura que fazem o trabalho para outras companhias. Essas empresas são chamadas de “fábricas de revisão de conteúdo”.
Em 2016, a empresa em que Li trabalha, Beyondsoft, tinha 200 empregados, e agora tem 4 mil. Eles trabalham dia e noite revisando conteúdo. Quando chegam para trabalhar, eles devem deixar seus eletrônicos pessoais em armários na entrada da empresa, e não conseguem fazer screenshots ou enviar qualquer tipo de informação de seus computadores de trabalho.
Inteligência artificial
O próximo passo é automatizar este trabalho, usando inteligência artificial. A empresa já tem 120 modelos de aprendizagem de máquina. Mas computadores ainda não têm uma interpretação tão refinada quanto a humana, e pelo menos inicialmente não podem captar ironia e sátiras.
Um exemplo que exige boa interpretação dos funcionários é a dos codinomes dos imperadores chineses. Um comentário em um site de notícias de Hong Kong de 2017 comparou seis líderes chineses desde Mao Zedong com imperadores da dinastia Han. Desde então, alguns usuários chineses passaram a usar os nomes dos imperadores para se referir aos líderes. Os censores precisam saber qual nome de cada imperador é usado para falar de qual líder moderno.
Já a foto da cadeira vazia é uma referência à ausência do ativista Li na cerimônia de entrega do Prêmio Nobel, já que ele estava preso na China e não conseguiu receber o prêmio.
A China construiu o sistema de censura mais sofisticado e extenso do mundo, que só tem crescido com o presidente Xi Jinping. Ele quer que a internet tenha um papel maior no fortalecimento do Partido Comunista na sociedade. Mais de 800 milhões de pessoas usam a internet na China diariamente.
Cada vez mais conteúdos são considerados sensíveis, e as punições estão cada vez mais severas. Entre os conteúdos censurados, 30% se referem à politica, enquanto o resto é relativo à pornografia, prostituição, apostas e armas. O software da Beyondsoft identifica 100 mil palavras importantes e mais de 3 milhões de derivações delas para seus clientes. [New York Times, CNET]