07/11/18 10:34:00
Liberdade, Necessidade e Moralidade em Hume e Kant
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Para Hume, a nossa prática moral não só não é minada pela necessidade que ele atribui ao comportamento humano como depende dela. Ele estabelece isso apelando a dois exemplos. O primeiro é a prática de recompensas e punições, que — como o seu propósito é influenciar o comportamento humano, como incentivos ou reforços positivos ou negativos para tornar mais ou menos provável dado comportamento no futuro — depende de que o comportamento humano de fato seja governado por regularidades causais que possamos compreender e predizer. Também depende de que as nossas recompensas e punições tenham alguma eficácia causal no dado comportamento.
O segundo é a prática de fazer juízos morais. Como o que avaliamos numa ação é o caráter do agente, e não a ação em si (apenas indiretamente, como um sinal para o caráter), e só temos acesso à mente dos outros por meio do seu comportamento externo, deve haver uma conexão causal entre mente e comportamento que fundamente a inferência da ação para as paixões, temperamento e caráter.
Estes dois aspectos da prática moral dependem de haver alguma causalidade (ou como chama, necessidade) no âmbito do comportamento humano. Mas, além disso, dependem também de haver exatamente o tipo de causação que caracteriza a liberdade compatibilista que Hume esposa. Para estas práticas terem fundamento, as ações não podem surgir do acaso (como ele chama, da liberdade de indiferença); tampouco podem elas surgir de uma cadeia causal que contorne a vontade do agente (o que seria uma ação devida à coerção ou violência externa). A vontade do agente deve ser ao menos um elo da corrente. E assim a liberdade, como ele chama, de espontaneidade (liberdade enquanto oposta à violência e não à causação pura e simplesmente) é tanto compatível como dependente do tipo de necessidade causal que Hume atribui ao comportamento humano na sua construção de uma ciência da natureza humana.
Note que a abordagem humeana à responsabilização e à punição é consequencialista, a qual as tem como um instrumento para promover o bem-estar social no futuro. Porém é difícil manter que esta abordagem dá conta de todas as nossas intuições neste campo; o que Hume parece manter e do que Ayer trata neste excerto:
Sobre a questão do livre arbítrio, acho que Hume está certo, exceto pela sua afirmação de que sua definição de liberdade é uma “com a qual todos os homens concordam”. Acho que seria de acordo geral que ele estabeleceu uma condição necessária da liberdade. No entanto, duvido se o pensamento comum a considera suficiente. Parece-me, antes, que não só nossos juízos morais como muitos de nossos sentimentos acerca de nós mesmos e outras pessoas, sentimentos tais como os de orgulho e gratidão, são em parte governados por uma noção de mérito que requer que nossas vontades sejam livres num sentido mais forte do que a definição de Hume admite. De uma maneira confusa, contemplamos a nós mesmos e os outros com o que foi por vezes descrito como um poder de autodeterminação.[1]
Nossas intuições sobre punição parecem estar divididas entre uma concepção consequencialista que Hume adota e uma outra, que pode ser chamada de retributivista. Esta é caracterizada por ter a punição como um meio de dar às pessoas o que elas merecem com base nas suas ações passadas. E o conceito de mérito aqui é exigente a ponto de não considerar suficiente a liberdade compatibilista que Hume acha suficiente. Kant partilha deste pondo de vista, principalmente por conta das exigências que a sua exigente moralidade faz às nossas capacidades de ação. Assim, ele é veementemente desdenhoso do conceito de liberdade “comparativa” de Hume, chegando a chamá-lo de subterfúgio desprezível e malabarismo verbal.
Esta exigente moralidade kantiana se baseia no conceito de um dever absoluto que faz demandas ao comportamento de todo ser racional, e assim não é condicionado por contingências sensíveis parciais tais como as nossas paixões. Assim este dever exige quepossamos agir de modo não condicionado por nossas paixões. Em primeiro lugar, este dever exige que nossa vontade cause nossas ações de acordo com leis morais, ao passo que nossa vontade empírica, nossas paixões, causa nossas ações de acordo com leis naturais.
Em segundo lugar, ao imputarmos alguém por ter feito algo que se desvia da lei moral, notamos uma discrepância entre o que de fato ocorreu com o que deveria ocorrer. Esta imputação exige um tipo de habilidade de agir de acordo com a lei moral, ou seja, de modo diferente de que de fato agiu. E isso exige que não consideremos impossível que ele pudesse agir diferente. Mas se as ocorrências determinantes passadas de fato o tornam impossível, a sua ação não pode ter sido determinada por ocorrências passadas. O agente necessita não da liberdade de espontaneidade humeana, mas da liberdade que Kant chama de transcendental, de poder iniciar ações não condicionadas por ocorrências externas, mas por si só. Este é o poder de autodeterminação com que Ayer acima diz que nos contemplamos de maneira confusa.
Dada a aceitação de Kant do determinismo empírico, perece que esta concepção indeterminista do livre arbítrio deveria levar Kant a um determinismo duro (a ideia de que em mundos possíveis deterministas não somos livres, que o mundo atual é determinista e que portanto não somos livres). Kant aceita que estamos num mundo determinista, mas enquanto sujeitos empíricos ou fenomênicos. Mas também estamos num mundo livre da causação natural no espaço e no tempo, enquanto sujeitos inteligíveis ou numênicos. Neste mundo inteligível ou numênico temos o tipo de liberdade transcendental exigido pelo dever e a responsabilidade moral. Porém, não podemos fazer sentido dela em termos teóricos ou científicos, o que é uma invocação de mistério que se tornou de praxe nos libertaristas.[2]
Embora não possamos fazer sentido dessa autonomia em termos de razão teórica, Kant, não obstante, mantém que temos que agir com base nesta ideia, ou seja, crer nessa liberdade na prática. Ou seja, não a razão teórica, mas a razão prática vindica a nossa liberdade.
- Ayer, A.J. (1980). Hume.
- Robert Kane ilustra esse ponto com a Montanha Incompatibilista, onde o libertarista tem dois problemas: o da subida e o da descida da montanha. Subir para chegar ao topo da montanha significa a tarefa de demonstrar que o livre arbítrio é incompatível com o determinismo. Por sua vez, descer da montanha significa demonstrar que o livre arbítrio é compatível com o indeterminismo: “Os alpinistas dizem que a descida do pico de uma montanha é frequentemente mais difícil e perigosa do que a subida; e este pode ser o caso para os libertaristas. O ar é rarefeito e frio lá em cima da Montanha Incompatibilista; e se lá se fica por qualquer quantidade de tempo, dizem os críticos do libertarismo, a mente fica nebulosa. Começa-se a ter visões de ideias fantásticas, tais como centros de poder transempíricos, egos numênicos e motores imóveis, que os libertaristas frequentemente invocaram para explicar o seu ponto de vista.” (Kane, A Contemporary Introduction to Free Will. P. 34)