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COMO JOSÉ JUNIOR QUER TRANSFORMAR O AFROREGGAE EM NEGÓCIO DE IMPACTO SOCIAL
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Poucas personalidades no mundo das ações sociais são tão conhecidas quanto José Pereira de Oliveira Junior, o José Junior, fundador do AfroReggae — ONG carioca que usa a arte e a cultura para reduzir a desigualdade e transformar a vida de moradores das comunidades do Rio de Janeiro.
Mas esse pequeno império parece ter desmoronado. O AfroReggae enfrentou problemas para pagar seus funcionários e a dívida do grupo chega a R$ 7 milhões. Junior, entretanto, diz que sabe como voltar ao topo.Midiático, personalista e amigo de celebridades, Junior, como é mais conhecido, levou a utopia das ONGs brasileiras ao Olimpo: chegou a ter 500 funcionários, movimentando recursos de mais de R$ 20 milhões, e impactando milhares de jovens que passaram pelos centros comunitários de Vigário Geral, Caju, Cantagalo e Parada de Lucas.
A estratégia de recuperação passa por uma produção maciça de conteúdo audiovisual. No ano que vem, estreia a série ficcional Verônica, no GNT; também em 2019, irá aos cinemas o longa-metragem A Divisão, sobre a onda de sequestros que varreu o Rio de Janeiro a partir de 1997.
Pai de seis filhos, Junior fez 50 anos no último dia 2 de julho. Viveu cinco anos sob proteção policial 24 horas ao dia — há um ano e um mês, dispensou essa escolta. Manteve contato com chefões do tráfico, como Elias Maluco e Celsinho da Vila Vintém, e se orgulha de ter “tirado do crime” um sem-número de traficantes.
O que provocou a crise do AfroReggae?
O modelo do terceiro setor brasileiro saturou. Quando comecei, há 25 anos, as grandes ONGs pegavam dinheiro da cooperação internacional, da Europa, Estados Unidos e Canadá.
Uma ONG como a nossa tinha de fazer um convênio se quisesse acessar a cooperação internacional. A gente foi a primeira que conseguiu furar esse bloqueio. Num segundo momento, as ONGs passaram a se relacionar com os governos, no início dos anos 2000. O governo Lula, para as ONGs, foi o melhor da história.
De 2005 em diante, o setor empresarial privado assumiu esse protagonismo de apoiar as ONGs, mas depois criaram seus próprios institutos. Quem patrocinava o AfroReggae? O governo do Estado do Rio de Janeiro, que faliu. Investiam R$ 3 milhões por ano.
E também a prefeitura do Rio, o Eduardo Paes. Quando ele saiu, o [atual prefeito, Marcelo] Crivella acabou com tudo. Menos R$ 3 milhões. Perdi R$ 6 milhões, mas segurei.
Você também foi abandonado pelos seus tradicionais patrocinadores. O que aconteceu?
A Odebrecht ainda tem uma parcela para me pagar. Ela foi superparceira do AfroReggae, tentou renovar o patrocínio, mesmo diante da crise [os problemas judiciais com a Lava Jato], mas não conseguiu.
Foi muito correta conosco, independentemente dos problemas deles. O Santander nos patrocinou por dez anos. Qual outro grupo que patrocinaram por dez anos? Nenhum. Fabio Barbosa era o presidente, nos tornamos amigos. Quando entrou o atual presidente, não quis patrocinar. Mas não tem problema nenhum.
E a Natura? Foi supercorreta, investiu o quanto pôde. Nesses dez anos, não tinha loja e não permitia uma porrada de coisas, mas encontrava recursos para nos apoiar. Sou um cara privilegiado. O modelo saturou? Tem de procurar outro caminho.
E sou sincero: saturou mesmo. O patrocínio que o Santander dá hoje é para o Museu do Amanhã. Entraram outros? Sim. Entrou a Ambev. Entrou a Gol. E eu estou negociando outras coisas.
Ano passado, se me perguntassem: você está com salários atrasados? Eu responderia: estou, e sem perspectiva de pagar. Agora estou negociando como pagar. Entrou recurso. Mas vou ficar fora da gestão, meus parceiros é que vão gerir.
Qual foi o efeito mais visível da crise econômica no gerenciamento do AfroReggae?
A crise arrebentou com a gente completamente. Eu até me pergunto como a organização continua de pé. Agora estou tentando fazer a reinvenção, redesenhando um caminho que dependa menos de patrocínio direto, um negócio de cunho social.
A primeira coisa é a criação de uma produtora de audiovisual, algo que iniciamos em 2016 [a AfroReggae Audiovisual]. Essa empresa criou projetos muito grandes, ficcionais, em sets ficcionais. Em 2019, vou estrear todos esses conteúdos, parrudos, novos. Nosso primeiro filme é A Divisão, que conta a história de como acabou a onda de sequestros que assolava o Rio nos anos 90.
É um modelo muito inovador: primeiro, exploramos a janela cinema. Depois, a TV a cabo, em uma série de três temporadas. A Globo está lançando a sua OTT [plataforma em que os conteúdos são livremente consumidos dentro de uma biblioteca previamente ofertada, como a Netflix], e nós estamos entrando nisso também.
Temos então três plataformas de lançamento, em parceria com a GloboSat e a Globo Filmes. A ONG é uma das acionistas da produtora audiovisual, e entre os sócios estão Armínio Fraga [ex-presidente do Banco Central], Paulo Ferraz [ex-presidente do banco Bozano, Simonsen], Patricia Ellen [sócia da McKinsey] e o fundo Investimage.
A produtora tem 60% do capital da ONG — os outros 40% são dos investidores. Se o filme A Divisão fizer uma boa bilheteria, paga os sócios do filme e o lucro volta pra produtora.
Há outros projetos em vista?
Tenho uma parceria em negociação com a Bossa Nova Filmes, de São Paulo, um projeto que vai ser a maior plataforma para falar de favela. Ele funde entretenimento, cultura e música negra de periferia.
O nome desse projeto é Crespo. Também estamos armando uma iniciativa social com o Corinthians, em Itaquera. O [diretor do Corinthians] Luis Paulo Rosenberg, ele adora o AfroReggae, gosta de mim pra caralho.
Veja: quanto custaria você botar sua marca na camisa do campeão brasileiro? Eu não paguei nada. Vamos fazer um trabalho com eles, coisas que vão returbinar os conteúdos que vou lançar no ano que vem. Temos ainda um outro projeto com a Hungry Man, uma produtora multinacional.
O head sou eu, a divisão é 70% pra gente, 30% pra eles. Criamos Verônica, uma série de ficção, a história de uma advogada, que vai passar no GNT. Obviamente, se foi criada por José Junior, é história sobre advogada de bandido, certo? Porque José Junior é sinônimo de tiro, porrada e bomba.
Junior do AfroReggae é do universo de bandido, de traficante, do policial que foi relegado. Junior sabe de coisas dos bastidores do Rio que nem o pessoal da polícia sabe. E são essas coisas que eu trago para a ficção.
A Globoplay vai virar uma Globoflix, e nós estamos nessa parceria. São todas histórias que têm potencial real, porque eu vivi tudo isso, eu vi tudo isso. O que muda é que não quero mais executar financeiramente porra nenhuma. Os parceiros é que vão executar.
Acha que sua imagem ficou arranhada?
Acho. Mas por que gente como Armínio Fraga segue confiando em mim? Se eu fizesse algo errado, esses caras estariam comigo? Eles sabem da minha seriedade, da minha integridade. Claro que eu tenho problemas. Quem lida com verba pública tem problemas. Estou buscando novos caminhos.
Dizem que você é playboy, tem carrão e mansão. É verdade ou é invenção de detratores?
Isso aqui é mansão? Eu gostaria mesmo de poder morar numa mansão. Não teria a menor vergonha. Não tenho o menor problema. Mas moro em Niterói, num condomínio de casas.
Tenho um carro blindado, porque em 2012 foi descoberto um plano para me assassinar. Um diretor do Santander, que me patrocinava, me arrumou um carro blindado. Tem seis anos isso. Eu vou te falar uma coisa: tenho 25 anos de AfroReggae. A lei me permite, como captador, ficar com 5% a 10% do valor captado em projetos. E eu nunca peguei um centavo de captação, embora a lei permita.
Por causa da série que eu criei agora, estão me pagando R$ 80 mil a título de direito autoral. Eu estou doando esse dinheiro para o AfroReggae. Porque, como o AfroReggae está fodido, resolvi doar.
A renda da minha biografia, escrita pelo Luis Erlanger [No fio da navalha, Editora Record, 2015], também doei para o AfroReggae. O AfroReggae nunca precisou tanto de mim quanto agora. Eu moro bem e me visto bem. Mas eu me visto sem gastar um tostão. Eu tenho Osklen, Reserva, Adidas. Essas marcas me patrocinam com roupas.
Acredita que suas ligações políticas podem ter a ver com os problemas do AfroReggae?
Você, como uma parte da torcida do Corinthians e do Flamengo, acha que eu fiquei rico. E eu sei porque: eu tenho cara de PT e apoiei Aécio [Neves, candidato à Presidência da República pelo PSDB em 2014], mano.
É uma das raivas que as pessoas têm de mim. Mas eu só fiz uma campanha na vida. Em 1989, votei no Lula; em 2002 e 2006, votei no Lula; em 2010, votei na Dilma. Só uma vez eu apoiei outro candidato, o Aécio.
Só que ele perdeu. Nunca mais faço campanha na vida. Eu me arrependi pra caralho. Mas eu aprendi muita coisa. Eu sempre aprendo. Trabalhei com a polícia durante seis ou oito anos.
Tem coisas que eu faço que são sucesso, mas fazem tanto sucesso que nunca mais eu faço. Eu aprendi uma coisa com o Pelé: é preciso encerrar a carreira no auge. Eu soube encerrar a carreira no auge em várias coisas. Sentei com o tráfico, com a polícia, com todo mundo, e mediei uma guerra.
Mas não faço mais isso. Não quero. Porque eu sempre saí vivo, não se pode abusar. Senão, amanhã eu vou numa favela e um cara do quinto escalão me dá um tiro na cara. Um cara que nem eu, que já mediou conflitos? Que já disse não pra Nike e pra Coca-Cola no ano da Copa do Mundo, em 2014?
Por que disse não para a Nike?
Aos 14 anos, eu queria ter um tênis Nike, um desejo impossível. Eu vi meninos que entraram para o tráfico somente para poder ter um tênis, tênis que por sua vez provinha do trabalho infantil no sudeste asiático.
A empresa só se posicionou sobre esses problemas após muita pressão. Eu batia muito na Nike. Hoje acho que ela se reinventou, não bato mais, não. Eu tenho interesse em dialogar. Minha marca é que eu sou destemido. Se eu fosse lutador de boxe, subiria no ringue disposto a morrer.
Mas se perdesse, ia cair lutando. Não dá para a gente viver certas mentiras, certas inverdades. Os patrocinadores ficaram arredios durante um tempo, mas hoje eles já me atendem de novo.
O cara que mais me ajudou, no auge da crise, foi o Armínio Fraga. Além de ser investidor, foi o cara que mais me deu força. E eu esperava isso de outras pessoas. Não vou dizer nomes porque são amigos, mas me deixaram na mão.
Você integrou o Conselhão [Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social] do presidente Michel Temer. O que deu errado nesse governo, na sua opinião?
Esse governo está todo errado, como o anterior. Acho que já nasceu desandado. Não tem interlocução nenhuma com a sociedade civil e a população, nem com nenhum tipo de segmento social.
Está marcado pela corrupção, como o anterior também. E tem um presidente sem legitimidade nenhuma, com a menor aprovação da história. É todo equivocado. Você tem uma pseudossensação de segurança quando vê o Exército na rua: ele não tem colete, tudo sucateado, não tem armamento. Mas não é nem só culpa desse governo. Sinceramente, eu percebo que essas eleições estão muito parecidas com a Copa do Mundo, o desinteresse é geral.
Antigamente quando ia às ruas estava tudo cheio de bandeira. Em 1989, eu sentia uma paixão, as pessoas torciam pelos seus candidatos. Toda eleição eu tinha candidato, mas agora eu não sei.
Nessa nova fase do AfroReggae, você disse que viraria um vendedor de projetos. É isso que está se tornando?
Sim. Assim que acabar esse nosso papo, tenho almoço com o diretor-presidente do Sebrae do Rio de Janeiro.
Ele vai instalar já em agosto, no Centro Cultural Waly Salomão, em Vigário Geral, a primeira escola de economia criativa dentro de uma favela. Você tem ali, por exemplo, grupos culturais ou de funk, e nós vamos montar negócios para eles, ensinaremos a criar a comunicação. O [curador e videomaker] Marcelo Dantas está trabalhando numa reambientação do Centro Waly Salomão.
Montaremos um núcleo de formação de novos youtubers, de preferência youtubers negros da favela. Temos uma negociação com a empresa de finalização Quanta, que vai instalar cursos de acessibilidade no audiovisual, cursos de câmera, de áudio. Isso tudo são coisas que o AfroReggae não fazia no passado. Então a gente vai estar muito com essas ações, buscando parcerias.
Como vai funcionar o projeto de e-games?
Estamos montando nosso primeiro centro para e-atletas, o AfroGames. Hoje, a indústria do e-sports [competições organizadas de jogos eletrônicos] é maior do que a música e o cinema juntos. Nós queremos dar chance para os negros também entrarem nesse mercado. Com um centro de formação de atletas, esses times de e-sports se monetizam, geram dinheiro, vai ser uma espécie de Jamaica Abaixo de Zero.
E ainda tem uma vantagem: qualquer um pode jogar. A gente brinca que vai ter mais do que um time. Engajaremos mais mulheres, mais transexuais, mais cadeirantes. Mesmo tendo as minorias, vamos fazer com que possam disputar de igual para igual. Isso pode virar uma febre. O primeiro centro será em Vigário Geral.
O próximo a gente planeja instalar no Cantagalo. Os centros de e-sports nas periferias podem virar um fenômeno semelhante ao que foram as lan houses.
As ideias que você expõe preveem investimentos para ações que podem ser rentáveis, mas a longo prazo. O que você tem para o curto prazo?
Temos um desafio gigantesco à frente. Desde setembro de 2016, estamos com um processo contra o Google. Foi assim: há alguns anos, nós iniciamos um projeto de mapeamento das favelas, chamado Tá no Mapa!. Ganhou muitos prêmios, como o Leão de Prata e o Leão de Bronze em Cannes.
O projeto cresceu, ficou robusto. Aí o Google sugeriu que a gente fizesse parceria, transformaram em algo que batizaram como Além do Mapa. Eles se apropriaram do nosso projeto. Hoje, em Los Angeles, tem uma audiência desse caso. Temos advogado e gente do AfroReggae lá.
O Google se apropriou do nosso projeto e o nome da gente não foi citado quando lançaram, uma semana antes dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. A ação corre em São José, na Califórnia.
A Corte americana aceitou a denúncia e em 9 de julho eu vou lá dar depoimento. Eu já me meti em várias guerras, entrei em causas tidas como impossíveis, desde guerra em favela, na tarefa de tirar pessoas do tráfico, até ser ameaçado de morte. Mas este talvez seja o maior desafio da minha vida, porque é Davi contra “Googlias”, e a gente está indo disputar na casa do adversário. Se a gente ganhar, abre um precedente mundial.
Como vê o futuro do AfroReggae?
Eu tinha 24 anos quando fundei o AfroReggae. Não tinha estudo. Nem sabia o que era ONG. Era tudo muito novo. Hoje, com 50 anos, sei que o AfroReggae não vai acabar, vai passar de geração para geração. A minha luta agora é para poder arrumar. Olha quantas novidades eu estou te contando. Uma coisa é o AfroReggae como era, a outra é o de agora. 2019 será o ano da retomada.