Notícia - Ser ateu faz mal para a saúde mental?
 21/11/18 10:22:06

Ser ateu faz mal para a saúde mental?


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Creio que você já tenha ouvido a expressão “Estou bem, graças a Deus”. Sua mensagem básica é clara: o criador e regente do universo estaria cuidando do bem-estar do religioso. Duvida? Hoje em dia, até mesmo alguns cientistas parecem estar afirmando isso.Parecem. Entre os dados de pesquisa e o público leigo, muitos vieses midiáticos e individuais podem acabar reforçando a ideia de que, enquanto ser religioso “faz bem”, ser ateu “faz mal”. Por isso, é bom que duvidemos, sim. Mas, mais do que isso, é bom que a gente pare um pouco para analisar o caso – ainda mais porque estão em jogo algumas premissas cientificamente fundamentadas.

 

Nas últimas décadas, muitos estudos têm constatado que, quanto mais religiosa é uma pessoa, melhor é sua saúde mental. Por exemplo, algumas revisões sistemáticas constataram que níveis mais elevados de religiosidade estão correlacionados a menos sintomas depressivos e de ansiedade, a menos comportamentos de risco – como abusar de substâncias psicoativas – e a uma autoestima melhor (Bonelli & Koenig, 2013; Yonker, Schnabelrauch, & DeHaan, 2012). Diante de achados como esses, fica parecendo que ser ateu realmente não é um bom negócio.

 

Mas, como as aparências podem enganar, alguns pesquisadores têm começado a questionar a implicação desses dados. Em primeiro lugar, a associação entre religiosidade e saúde mental é, em geral, fraca e relativa. Por exemplo, achados de uma meta-análise sugerem que a religiosidade ameniza apenas modestamente a presença de sintomas depressivos, e principalmente entre pessoas que estão passando por situações de muito estresse (Smith, McCullough & Poll, 2003). Num estudo multicêntrico (Stavrova, Fetchenhauer & Schlösser, 2013), foi encontrado que, embora pessoas mais religiosas tendam a ser mais felizes e satisfeitas com a vida, isso é influenciado por características culturais locais. Exemplos dessas características são a valorização da religiosidade e a presença de atitudes negativas em relação a pessoas pouco (ou não) religiosas. Em países pouco religiosos, os presumíveis benefícios da religiosidade ou se reduzem, ou se desfazem completamente. Conforme concluem os autores, “a forma como a religiosidade pessoal afeta a felicidade e a satisfação com a vida é modelada por contextos sociais” (p. 103). Nesse caso, um religioso poderia afirmar “Estou bem, graças à convivência com meus colegas religiosos”.

 

“Em países pouco religiosos, os presumíveis benefícios da religiosidade ou se reduzem, ou se desfazem completamente.”

 

Nadando contra a corrente, dois pesquisadores reuniram e discutiram evidências de que a religiosidade pode também fazer mal (Weber & Pargament, 2014). Por um lado, pessoas religiosas podem ter uma saúde mental levemente melhor por crerem num Deus que as ama, por receberem suporte social de sua comunidade religiosa e por serem mais esperançosas. Por outro lado, alguns religiosos sofrem ao entenderem que pecaram, ao se verem punidas e/ou abandonadas por Deus e ao demorarem mais a procurar um tratamento profissional quando desenvolvem transtornos mentais. Com esse contraponto, os autores lembram que nem tudo o que emana das religiões é luz.

 

Além disso, tem sido apontado que a maior parte dos estudos sobre religiosidade e saúde mental é feita com amostras predominantemente religiosas. Vou esclarecer a implicação disso a partir de uma analogia. Imagine que várias pesquisas constatem que alunos que estudam mais em casa têm mais satisfação com suas vidas. A partir disso, seria razoável concluir que pessoas que não são estudantes – porque evadiram a escola ou porque já se formaram – são menos satisfeitas com a vida? Parece que não. No máximo, poderíamos afirmar que, entre estudantes, e por motivos ainda desconhecidos, estudar em casa tende a estar positivamente correlacionado com a satisfação com a vida. Analogamente, a maior parte dos dados atuais apenas nos permite afirmar que, entre pessoas religiosas, as que são espiritualmente mais ativas – por exemplo, as que oram mais, as que são mais assíduas em reuniões religiosas e as que têm mais fé em Deus – tendem a apresentar uma saúde mental um pouco melhor. Portanto, e apesar das aparências, isso não diz coisa alguma sobre os ateus.

 

Em vista disso, nosso grupo de pesquisa está realizando uma revisão sistemática de estudos que compararam diretamente pessoas religiosas com pessoas não religiosas – incluindo os ateus. Até o momento, verificamos que 87,5% dos resultados das comparações realizadas entre ateus e diversos subgrupos de religiosos foram similares. Encontramos evidências de que os ateus entrevistados se assemelhavam aos religiosos em relação a sintomas depressivos, estresse, bem-estar e satisfação com a vida. Contudo, duas das quatro comparações relativas à variável “sentido na vida” foram positivas para os religiosos. Uma vez que esses achados foram obtidos a partir de amostras de idosos, é possível que os descrentes sejam mais suscetíveis a “turbulências existenciais” durante essa fase da vida. Nesse sentido, a religião pode estar cumprindo aí uma de suas principais funções: fornecer às pessoas recursos psicológicos que as auxiliem a enfrentar situações adversas – como a de encarar a aproximação da própria morte.

 

Mas precisamos ir com calma. Nossa revisão possui limitações, e alguns de seus achados específicos – como o que acabamos de discutir – devem ser interpretados comoinconclusivos. Precisamos lembrar que esses estudos falam sobre tendências estatísticas, as quais podem variar conforme variam as características das amostras investigadas. Aliás, precisamos ter em mente que os integrantes de um mesmo grupo apresentam suas diferenças individuais. Por exemplo, pesquisas recentes têm indicado que a saúde mental de ateus mais convictos – isto é, os mais confiantes de que Deus não existe – é melhor do que a de ateus mais “moderados” (Galen & Kloet, 2011). Por motivos que precisam ser mais bem esclarecidos, é possível que, em relação à saúde mental, as certezas existenciais sejam mais importantes do que as crenças existenciais. Esse pode ser um dos motivos por que, em nossa revisão, o grupo que apresentou resultados relativamente piores de saúde mental foi o dos agnósticos. Se esse for o caso, então ateus e religiosos mais convictos poderiam afirmar, em uma e só voz, que “Estamos bem, graças às nossas convicções”.

 

Brincadeiras à parte, saúde mental é coisa séria, e o delírio dos psicóticos é uma boa evidência de que não podemos contar apenas com as nossas convicções. Na verdade, muitas características individuais básicas – tais como a idade, o suporte social e até o gênero – correlacionam-se mais fortemente com o bem-estar do que a crença – ou a descrença – em Deus (Galen & Kloet, 2011). Ainda que a religiosidade possa ajudar um pouco durante as adversidades, parece que os ateus estão indo bem por sua própria conta. E, no final das contas, parece que já temos algumas evidências de que, por bem ou por mal, as graças e as desgraças da nossa saúde mental dependem só de nós mesmos – quer sejamos religiosos, quer não.

 

 

REFERÊNCIAS

 

Bonelli, R. M., & Koenig, H. G. (2013). Mental Disorders, Religion and Spirituality 1990 to 2010: A Systematic Evidence-Based Review. Journal of Religion and Health52, 657–673.

Galen, L. W., & Kloet, J. D. (2011). Mental well-being in the religious and the non-religious: Evidence for a curvilinear relationship. Mental Health, Religion & Culture14(7), 673–689.

Smith, T. B., McCullough, M. E., & Poll, J. (2003). Religiousness and depression: Evidence for a main effect and the moderating influence of stressful life events. Psychological Bulletin, 116, 614–636

Stavrova, O., Fetchenhauer, D., & Schlösser, T. (2013). Why are religious people happy? The effect of the social norm of religiosity across countries. Social Science Research42(1), 90–105.

Weber, S. R., & Pargament, K. I. (2014). The role of religion and spirituality in mental health. Current Opinion in Psychiatry27(5), 358–363.

Yonker, J. E., Schnabelrauch, C. A., & DeHaan, L. G. (2012). The relationship between spirituality and religiosity on psychological outcomes in adolescents and emerging adults: A meta-analytic review.Journal of Adolescence35(2), 299–314.